Súplicas pela prática missionária
Por Daniel Buanaher
“Eu amo este lugar, meu irmão!… Quero continuar trabalhando aqui, porque me sinto bem fazendo o que faço no lugar que faço”. Provavelmente você pode pensar que essa frase é de Mark Zuckerberg ou de um outro empresário de sucesso. Até podia ser! Mas na verdade ela saiu da boca de um homem que conheci em uma região remota, no interior da África. Esse homem estava falando, com todas as letras e sílabas, que estava feliz por estar trabalhando entre um povo que, na verdade, não estava tão animado com sua presença em sua vila. Do mesmo modo, mesmo que resulte em ódio alheio deveríamos sentir prazer em fazer o que Deus quer de nós. Para esse homem a alegria se resume em estar no lugar certo, fazendo a coisa certa para o Deus certo.
Conheci o pastor Ntombuela – assim se chamava aquele homem – quando, pela primeira vez, cheguei em Ibo numa viagem que fiz em junho do ano passado.
Bem, para ser justo com as datas, foi precisamente na madrugada do dia 12 de junho de 2015, que parti de Pemba[1] rumo à ilha do Ibo. Percorri centenas de quilômetros por terra e outras dezenas por mar. Tudo, é claro, à moda africana. O carro era uma camionete caixa aberta de marca Mitsubishi Canter. Apesar de ser uma viagem bastante longa, pois dura cerca de oito horas viajar de minha cidade para Ibo, essa viatura estava praticamente entulhada de bagagens. Eram sacos de arroz e milho e galões de óleo para abastecer a ilha; e havia também um montão de caixas de isopor espalhadas pela carroceria que tinham o fim de trazer peixe da ilha. Nossos pés ficaram postos sobre eles a viagem toda. Quando atravessávamos zonas onde não havia asfalto a poeira nem precisava pedir licença para inundar a traseira da camionete.
Quando, finalmente, chegamos à beira do mar que separa a ilha do restante de terra, entrei num barco que já estava na praia à espera da clientela. A embarcação era de madeira, movida à motor. Acho que nem preciso contar que, ela também estava cheia de gente e produtos alimentares. Como ansiosamente, aguardava a hora de avistar a ilha, nem a poeira, nem qualquer outra dificuldade podia ofuscar o desejo que tinha em colocar meu pé naquele solo. Queria tanto conhecer o distrito mais islâmico da província e que é tão famoso pelo enorme aparato histórico que possui. Queria tanto desfrutar da comunhão dos irmãos. Faltava muito pouco para isso acontecer.
Assim que tudo estava aposto para os marinheiros, ligaram o motor e partimos sem demora. O mar estava sereno, as ondas quase não marulhavam, foi bem tranquilo. E eu rodeava o mar com os olhos encantado com a criação de Deus.
A ILHA DO IBO
– Terra à vista! – disse para mim mesmo quando de longe vi algumas coisas como casas. Tudo indicava que, sem ter me dado conta, a ideia de um navegador em uma grande aventura havia tomado conta de mim durante o trajeto. E não era para menos: nunca tinha navegado no mar a uma grande distância assim.
A tarde era fria, com céu muito pálido e o mar azul-cíano no porto estava muitíssimo agitado. Ventava bastante. Longe, avistávamos o porto da Ilha do Ibo com um montão de gente à espera das mercadorias, amigos e familiares. Com certa dificuldade, por causa do vento forte, ancoramos no Porto do Ibo.
Quando o ponteiro do relógio rondava a 14ª hora, felizmente, eu já me encontrava na Ilha do Ibo. A viagem, graças a Deus até então estava correndo sem sobressaltos.
Já no porto não encontrei ninguém que viera me receber, teria que aguardar um pouco (pensei). E enquanto esperava os meus anfitriões, notei algumas coisas curiosas, bem curiosas. Na verdade, quase tudo me chamou atenção. A língua era o muani, falada por quase todos que encontrava – uma língua que falo razoavelmente, mas nunca estivera em ambiente em que a maioria esmagadora se comunicasse nesse idioma. As mulheres, com quase o corpo todo escondido sob véus e capulanas[2], quase sempre esboçando modos de submissão. Os homens, em sua grande maioria, munidos de cofiós[3] e túnicas islâmicas; esses estavam envolvidos nos trabalhos que requeriam força bruta. A maioria das construções em ruínas; monumentos antigos e históricos, surrados pelo tempo, estão espalhados pela vila. Os costumes, requintados de islamismo. E o lindo mar de anil que cerca toda vila. Digeri, impactado, essas as primeiras impressões do vilarejo.
Apesar de eu estar entre africanos como eu, me senti tonto com tanta variedade cultural. Em outra cultura vemos como somos provincianos. É difícil lidar com cheiros, paladares e paisagens novos. Em uma cultura em que quase tudo espanta, tudo choca, tudo fascina, a gente consegue avaliar a estreiteza de nossa própria mente. Estranhamente, era isso que sentia naqueles instantes.
Fiquei abismado. Um tornado cultural e religioso me deixou tonto. Tentei decifrar uma história centenária, que jamais entenderei completamente. Islam, quase onipresente, prevalece por toda vila do Ibo. Notei que era minoria – de novo. Me senti frágil. Tive medo. Eu pressentia – erroneamente – que alguém poderia me surrar na próxima esquina. Cheguei a ver terroristas onde não existia nenhum. Que bobagem, mas nesses momentos nosso coração experimenta sensações que jamais esperávamos que nos ocorresse.
Mais estranho ainda é que me vi envolto num paradoxo. Porque ao mesmo tempo que me achava surrado pelo medo, meu coração movia-se de compaixão; ao mesmo que temia me sentia ousado a amar. O amor é um ato de coragem. Afinal, ali estava a imagem de Deus, gente pela qual o Filho de Deus derramou o seu precioso sangue. Sabia que o mandato sagrado é de praticar o amor que vai além de nossas fronteiras étnicas, raciais, culturais ou religiosas. Amor que se dá deixando de olhar, simplesmente, para os seus próprios interesses. Amor que só Deus que é amor pode derramar em nós.
Eu ainda estava nessas minhas divagações quando de repente os meus anfitriões me acharam. O pastor é um homem de meia idade, uma figura amistosa. Muito fez para que eu me sentisse em casa e para que eu continuasse entusiasmado com a vila. Seu nome é N’tombuela – o homem que mencionei no início deste texto – e estava com um outro homem de nome Alberto Patrício, um ancião da Igreja, que tinha um ar régio e simpático ao mesmo tempo. Mais tarde, fiquei sabendo que o Ancião Alberto Patrício era um oficial da Polícia moçambicana de renome na vila. Ele converteu-se através do que seus olhos testemunharam. Sua esposa, que há muitos anos se encontrava enferma e à beira da morte, fora curada através das orações dos irmãos. Por isso ele e sua casa se recusava a largar o caminho da graça, pois entenderam que só em Jesus, Deus manifesta seu pleno amor pela humanidade. É possível notar alegria e gratidão em seus olhos quando reconta a história de como a redenção bateu a porta de sua casa.
Após termos nos dedicado dizeres e abraços amistosos, alojaram-me devidamente e despediram-se para que eu pudesse descansar um pouco. O que de fato aconteceu.
– “Viremos te buscar mais tarde, para provar os mariscos de Ibo”, disseram eles acenando com as mãos em despedida.
– Claro, claro, disse eu, e fiz que tchau, até daqui a pouco.
Me hospedei na casa de um jovem, membro da igreja, cujo nome era Mildo. Ele não estava em casa, havia viajado para a capital (como vêm, fiz um desencontro com ele), mas fiquei aos cuidados do seu criado prestimoso. O moço logo me apresentou a casa e o lugar para reclinar a cabeça. Dormir debaixo de uma rede mosqueteira ao som do mar, numa casa de pedra e zinco, debaixo de um sol albino. Foi uma experiência animadora, para quem, como eu, estava quase habituado a deitar em moletons de algodão no quarto devidamente equipado em Vila Velha/ES, nos poucos anos que lá estive. Estava tão feliz. O sono não me deixara tão descansado nem o lanche, que depois saboreei, tão satisfeito: assim, comecei a entender algumas coisas que me eram necessárias reaprendê-las. Cada contexto é um contexto, e isto requer de nós uma dedicação e esforço específicos.
Acho que até agora eu não expliquei qual foi o motivo da minha viagem, não é mesmo? Certo!
Fui à Ibo para conhecer de perto o trabalho que o pastor Ntombuela, que é mantido pela ajuda monetária de uma igreja evangélica brasileira – a Assembleia de Deus de Cobilândia)[4]. Fui presenciar o trabalho que ele desenvolve por aquelas bandas, ministrar um curso de Aperfeiçoamento de Professores de escola Dominical (CAPED) e cooperar com a Igreja local no que fosse preciso. Fui para lá pronto para ajudar na ministração de estudos, visita aos irmãos, pregação e outras coisa do gênero (tudo, por assim dizer, dentro das quatro paredes). No entanto, in loco – isto é, no terreno – apurei que a estadia exigia mais. Já, já eu explico porquê.
De momento interessa contar que, meia hora depois, vieram me buscar para tomar as refeições. E eu que tinha ouvido qualquer coisa acerca de arroz com mariscos frescos, mesmo sem saber direito como era, juntei-me a eles e fomos de moto. E pelo caminho, de novo, fui arrebatado pelo assombro. Marcas do islamismo estavam espalhadas por todo lado. A indumentária árabe do povo; o forte grito do muadin[5] na hora das orações para convocar o povo à mesquita; o olhar indiferente dos anciãos da ilha por notarem a presença de mais um cristão; as madraças espalhadas pela vila; tudo denunciava a expressiva tradição islâmica existente. Afinal, em Ibo a religião predominante é o islamismo, a cultura é o islam, as vestes são islâmicas, os modos de pensamentos estão empapuçados de islamismo. Quase tudo gira em torno do islam.
Tendo chegado na casa pastoral, agonizei junto ao pastor, quis inteirar-me de tudo um pouco. Como ele sabia que o assunto religião é conversa para muitas horas, serviu-me primeiro os mariscos para matar a fome, depois a curiosidade. Depois de me deliciar das iguarias da ilha implorei novamente:
– Me conte sobre tudo que sabe, pastor (eu estava com a curiosidade à flor da pele, continuei) – dados estatísticos, condições em que a igreja está instalada, os desafios que enfrenta. Me conte o que puder.
Obviamente, pelas pesquisas que havia feito, eu já sabia que a ilha do Ibo é uma pequena ilha habitada por cerca de 5.020 habitantes, com mais de 500 anos de existência. Localizada próximo da costa da província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Que aquela pequena ilha de apenas dez quilômetros de comprimento e cinco de largura, foi no século XVII e antes da Ilha de Moçambique a capital da vasta zona que os portugueses dominavam (que depois foi conhecida por Moçambique). Estrategicamente situada, a sua localização permitia controlar o comércio árabe na região. E que se encontra dentro do Parque Nacional das Quirimbas, um dos destinos turísticos de turistas europeus e americanos por causa de suas praias paradisíacas. Mas eu queria saber das coisas que só os moradores sabem dizer pela vivência. Sabia que só eles poderiam me dizer com quantos espinhos se faz uma dor, por aquelas bandas. Com quantos sóis se faz uma tradição. Apenas eles.
Sobre as estatísticas, ele as confirmou. E ainda acrescentou: “o povo de Ibo é também composto por muitos imigrantes, aqui há muitos vientes”. Gente oriunda de várias partes de Moçambique, disse ele, vai para lá à procura de oportunidades de emprego, e também vão pessoas do mundo afora para explorar os recursos turísticos e culturais que a ilha oferece. Acrescentou também que a economia é muito difícil, pois ainda não há viabilidades para transportar alimentos e outros artefatos para abastecer a vila, causando a escassez de produtos de primeira necessidade. Isso justifica os carros e barcos entulhados de comida e outras coisas para atender a população. Disse-me, outrossim, que uma grande necessidade que ele mesmo tem é de uma rede de pesca para poder praticar a pesca para consumo e venda. Ele até pediu-me orações a esse favor!
A conversa foi um pouco mais além. Entre risos e espantos começamos a desfiar as conversas acerca da Obra de Deus. Foi aí que percebi a alegria que aquele homem transbordava de estar testemunhando o evangelho entre o povo muçulmano: “Eu amo este lugar, irmão Daniel. Quero continuar trabalhando aqui”, repetia várias vezes e de várias formas. Essas palavras ressonavam o meu íntimo, pois sabia que ele passava várias adversidades com o povo muani por ser um pastor evangélico. “Este homem tem apenas o básico para sobreviver”, pensei, “mas porque ama compartilhar o evangelho quer continuar aqui, mesmo que isso perigue sua própria vida e a de sua família”. Dava uma estranha sensação de tristeza e alegria por ouvir aquilo. Tristeza pelo perigo que ele está exposto, alegria por saber que Ibo tem um verdadeiro embaixador de Cristo.
Ele foi uma escola em pessoa para mim. Pois, embora tenha presenciado as mais cruéis expressões da maldade humana, os atos mais hediondos de violência e hostilidade inominável justificada equivocadamente em nome de Deus e da religião, seu semblante com sorriso largo que caracteriza os homens felizes é uma evidência indiscutível de que é possível, sim, atravessar o sofrimento ou as adversidades da vida sem perder a ternura e a crença no triunfo do amor de Deus derramado em seu filho Jesus. Meu desejo é traçar um trajeto de vida com a mesmo gozo em Deus.
Com certeza, eu não estava perante um teólogo (daqueles que amo ler e estudar), mas estava diante de um discípulo radical, alguém que entendeu o âmago do evangelho e quer viver para a glória de seu Deus. Entreguei-lhe a oferta que a Igreja brasileira mandou para seu sustento. E quando recebeu o valor, não conseguiu conter a alegria e logo deixou escapar algumas palavras:
– Graças a Deus! Graças a Deus! Chegou no momento certo, irmão Daniel. Estávamos começando a ficar apertados com as despesas da casa. Graças a Deus!
Depois, pediu-me por muito para transmitir seus agradecimentos a essa Igreja que mesmo a distância tem tornado possível a existência da única igreja evangélica na ilha de Ibo através das suas orações e contribuições monetárias que têm chegado até ele.
Já no finalzinho da nossa conversa, indaguei-lhe acerca de como era servir à Deus no distrito mais islâmico da Província e como o trabalho estava evoluindo.
– Irmão, aqui temos muitos desafios, respondeu. – Embora com muita dificuldade, hoje, pela misericórdia de Deus, nossa igreja conta com 22 membros. Mas o que me deixa ainda triste é que esse número não chega nem sequer a um por cento da população de Ibo. Somos a única igreja protestante aqui. A outra igreja é católica, que está em ruínas e quase ninguém vai para lá.
– Existe algum nativo convertido? – Perguntei, sabendo que era muito difícil um muçulmano se converter ao evangelho.
– Existe sim. Um jovem muani se converteu, mas ele não vem a igreja, ainda.
– E por quê?
– Porque se vier sua família o põe para fora de casa e a sociedade toda escarnecerá dele – prosseguiu o pastor –, e como ele ainda é novo na fé prefere continuar com sua família, por enquanto. Diz ele que quando faz viagens para outros distritos, lá ele procura uma igreja evangélica. Aqui é assim, quando uma família descobre que um dos seus se converteu ao cristianismo fazem de tudo para impedi-lo de seguir a fé cristã.
Em seguida, perguntei-lhe sobre o templo. Ele contou-me que eles cultuavam na casa alugada que ele e sua família estava morando e que estavam construindo um templo num lugar bem localizado, no centro da vila. E ciente das dificuldades que é construir um templo, numa ilha, questionei-lhe sobre a que pé andava a construção: Quanto falta para terminar?
– De momento, está paralisada por falta de fundos, – explicou o pastor, com a voz um pouco rouca de tristeza. – Necessitamos mais de 12.000,00 Meticais para fazer o piso e colocar janelas e portas lá. Só falta isso. (O metical dos moçambicanos, que é a principal moeda da região, vale cerca de R$ 0,075; assim, um real vale cerca de treze meticais.)
Eu franzi o rosto em reação à notícia da paralisação da construção do templo.
– Mas temos que terminar, não é mesmo pastor? – indaguei num ato de quebra-silêncio, mas também de esperança.
– Sim, sim! – exclamou o Pastor N’tombuela, convicto no que queria.
– E como os muçulmanos olham para a construção? (Indaguei, sabendo da aversão acirrada dos seus circunstantes).
– Iiih! – exclamou o clérigo. – Eles fazem de tudo para impedir. Sabe, um dia eu estava indo à igreja para fazer as minhas orações matinais como de costume. O que não podia imaginar é que me encontraria com tamanha vergonha.
– Vergonha? O que foi que aconteceu, pastor? – perguntei, curioso.
– Nem imaginas, irmão Daniel – respondeu ele, prontamente. – Quando lá cheguei, assustei-me quando encontrei alguns velhos muçulmanos entoando canções e dançando nus, ao redor do nosso templo que está em construção.
– Quantos eram? – Inquiri.
– Não me lembro bem. Mas passavam de cinco.
– Meu Deus! Eles eram muitos, pela hora.
– Sim! E eu que ainda não sei falar muani com fluência, nem árabe, não entendi o que estavam falando e cantando com tanta avidez – explicou peremptório. – Mas depois fiquei sabendo que eles estavam proferindo impropérios e maldições contra a construção do templo. Fiquei sabendo disso, no dia seguinte. Uma de suas vizinhas, amiga nossa, disse-me que eles fizeram juramentos em nome de Allá[6], afirmando que o templo não seria terminado.
– Deus do céu! Não acredito! – exclamei assustado com tamanha incursão para parar o evangelho.
– Pois acredite, irmão. Alguns conhecidos, me disseram também que haviam dito que nós não conseguiríamos fazer o teto da igreja. Nessa época, faltava colocar as chapas de zinco para fazer a cobertura, mas, pela graça de Deus, já fizemos o teto. Como vês, a casa está totalmente coberta!
– Glória Deus! – jubilei alegrando-me com ele, que estava também jubiloso pelas vitórias que Deus vinha lhe dando.
Podia ver a satisfação que ele tinha em contar cada vitória que Deus estava lhe proporcionando por aquelas terras. Mas porque minha viagem estava sendo muito interessante, me animei a conhecer o tão falado templo:
– Pode me acompanhar para que eu possa conhecer o templo, pastor? – propus-lhe. – Estou muito ansioso por conhece-lo.
– Claro! Claro, irmão! Quer ir agora?
– Se não for incomodo, é claro…
Partimos rumo ao templo, o ancião foi conosco. Não ficava tão longe, por isso fomos a pé. Mas antes levou-me para conhecer alguns lugares históricos. Conduziu-me até a Fortaleza da Ilha do Ibo. Fiquei abismado com a história centenária patente naquele edifício. Quando era do Estado Novo Português, a fortaleza foi utilizada como prisão política pela PIDE/DGS capaz de aquartelar 300 homens. Situada junto ao mar, apresenta planta no formato poligonal estrelado, em alvenaria de pedra de coral e cal. Na cortina, pelo lado de terra, rasga-se o Portão de Armas. Restaurada, os seus visitantes podem apreciar a Capela de São João Baptista, a sala de interrogatório (onde se lia numa das paredes o lema “Entra vivo, sai morto”), a cozinha, e a comua dos detentos com cinco orifícios. É um lugar magnifico de se ver. Após a breve visita aquele lugar partimos.
E, finalmente, chegamos no local onde fica o futuro templo da Igreja do Ibo. Realmente, está muito bem localizado. No entanto, o templo carece de finalização da construção, porque periga ruir, já que faz tempo que a obra está parada. Mostrou-me o piso que precisa ser acabado, as janelas que não existem, et cetera! Tendo terminado a visita por ali, prosseguimos para os nossos aposentos.
No dia seguinte, era domingo, o dia do Senhor. Eu era o pregador da manhã e falei sobre a necessidade de testemunhar em tempos e lugares adversos, sermão baseado no texto de Salmo 137. Desencorajei-os a tomar a postura que os hebreus tomaram quando estavam no exílio, em um ambiente hostil, que recusaram a cantar os cânticos de Sião ficando apáticos naquela que seria boa oportunidade de testemunhar. Procurei demonstra-los o impacto que o Cristianismo exerce sobre o caráter e sobre a vida dos seus fiéis, de modo que os não cristãos queiram se tornar cristãos. Assim como os pagãos dos tempos primitivos foram atraídos para a igreja não tanto pelas pregações, mas pelo que enxergavam na vida dos cristãos, o que os fazia exclamar, espantados: “Como esses cristãos amam uns aos outros!”
O Pastor considerou o sermão como um estudo. Por isso, depois de ter pregado por cerca de 40 minutos abriu um espaço para perguntas e respostas. Foi uma benção. Eles perguntaram sobre tudo um pouco. E Deus nos proporcionou um momento em comunhão muito agradável.
Enquanto permaneci na ilha, preguei o evangelho para algumas pessoas não evangélicas quando podia. Inclusive, tive a oportunidade de pregar para o filho do Administrador da Ilha (o chefe máximo da Ilha), que se mostrou muito simpático com as palavras que lhe falei; prometeu-me que depois procuraria nossa igreja. Visitei alguns dos nossos irmãos e conversei bastante com o Pastor para inteirar-me melhor da situação do evangelho na ilha e incentivá-lo ainda a ser um embaixador de Cristo em Ibo. A família do pastor foi super amável comigo, estava sempre pronta para me dar suporte no que precisasse.
No final do dia, no domingo, enquanto regressava para casa meus olhos fixaram-se um pouco no além. A tarde era de espantosa beleza, com um pôr-do-sol vermelho e purpurino que deixa o mar com aspecto deslumbrante. Era simplesmente encantador vislumbrar a obra das mãos de Deus daquele ponto. Hoje eu penso: as circunstancias podem até não ser tão favoráveis, mas Deus deu um presente para aquela gente que muitos invejariam. Que pôr-do-sol maravilhoso!
O QUE ACONTECEU NA VOLTA
Já na segunda-feira, dia do meu retorno, o pastor pediu, de novo, muitas orações por Ibo. E fez-me “prometer” que falaria aos irmãos que o ajudam acerca de sua gratidão pela ajuda que todos os meses lhe chega para abençoar a ele e a sua família, e consequentemente a obra de Deus. O Pastor também clamou por uma equipe de visita para ministrar ensinamentos à igreja e gente para ajudar na pregação do evangelho, pois, segundo ele, tanto carecem. “Fale para os irmãos que orem por nós e um dia venham nos visitar!”, são as últimas palavras que me lembro que saíram de sua boca.
Não posso descrever aqui todos os detalhes maravilhosos dessa visita. Creio que é suficiente o que relatei procurando mostrar o quão necessário é a prática missionária em lugares longínquos. Há uma necessidade gritante de embaixadores do evangelho dispostos a renegar suas vidas por amor a Cristo. Missões é ir aonde pessoas adoram qualquer coisa ou deus que não seja o Criador dos céus e da terra, para que estes venham a se prostrar àquele que deve receber toda honra e glória. Portanto, isso deveria mover a igreja mundial em campanhas missionárias para que a adoração a Deus – repito – aconteça.
Três dias após o desembarque, saia eu da Ilha do Ibo. As despedidas foram solenes; o pastor esperou até a embarcação levantar a âncora e não conseguir avistar o barco para abandonar o porto. O tempo não nos perdoou naquele dia, pois caíam alguns pingos de chuva. Depois, os pingos foram se engrossando e se avolumando que já dava para falar de uma chuvona.
Ao meu lado estava um cidadão espanhol que dizia chamar-se Four. Era um cidadão muito simpático de sessenta e poucos anos de idade. Com ele aproveitei praticar meu enferrujado portunhol – valeu o mico. Ele parecia que se sentia confortável comigo. Contou-me um pouco das suas aventuras e eu das minhas; gargalhamos tanto que os outros já começavam a molhar olhares para a gente.
Não durou tanto essa felicidade. De repente, vi uma fumaça rapidamente enchendo o barco. O motor num instante içou fogo, que deixou todos apavorados. Houveram gritarias por todo o lado. O barco pareceu diminuir a velocidade, como se adoecesse aos poucos. Um dos homens que entornava água para o local que o fogo vinha parou de repente, quando o muzungo (como os muanis chamam os brancos) gritou qualquer coisa como:
– No me puedo crer. No… no, ¡no tire agua! ¡No tire agua!
E tinha razão. Pois eu sabia que ´sgua e corrente elétrica não dá certo (eu aprendera isso no meu curso de eletricidade geral), era melhor arrumar outra alternativa. Num instante, todos começaram afastar as mulheres e crianças que estavam perto do fogo, freneticamente.
– Umwé n’galawani pó! Mulawé! (Saiam daí! Saiam!) – gritava um homem gordo… muito gordo, por sinal. Me parece que era o dono do barco, ele usava uma pochete (guarda-mola é o nome que os moçambicanos lhe dão) onde colocou o dinheiro que cobrara dos passageiros, inclusive o meu.
Jogaram peças tecido grosso e pesado por cima do fogo, batendo-o várias vezes. Algumas peças tiraram das vestes das mamãs, elas quase sempre dulcificam as capulandas coloridasque vestem. E: Deus seja louvado pela valentia de todos! O fogo, por fim, foi extinguido com tais peças. E, alguns instantes depois, não sei como, conseguiram ligar o mesmo motor, que tinha tomado um negro de queimado, e retomamos a viagem. A tripulação espalhava-se pelo convés, uns sentados, outros de pé, assustados. Breve, já comentavam o caso e até riam.
O muzungo espanhol, como um bom turista que era aproveitou a situação para tirar algumas fotos depois que o pânico havia se passado. Quanto a mim, nem me atrevi a bancar de turista, fiquei na minha. Na verdade, por algum instante pensei que aquele teria sido o último sol que eu estava vendo. Não era por não saber nadar, mas era pelo fogo. Já que eu estava bem próximo do motor e agente estava ainda no meio do percurso. Mas não foi daquela vez; e graças a Deus por isso!
Depois desse incidente navegamos sem sobressaltos. O restante da viagem por terra também correu bem, desta vez peguei uma Van (minibus é o nome que os moçambicanos lhe dão). Cheguei em casa, em Pemba, são e salvo. Acho que ninguém em Pemba ficou sabendo do incidente no mar, mas regozijaram-se comigo das alegrias do evangelho em Ibo.
Voltei de lá impactado. Na verdade, minha missão ali ficou inacabada. Acredito que um dia voltarei para lá com mais gente e recursos para poder ajudar na propagação do poderoso evangelho. Esse é o meu desejo. E quero poder contar com o povo de Deus para isso.
Que o Espírito Santo possa nos ensinar como ser e nos tornarmos mais autenticamente “povo missionário de Deus” neste século, enviado a um mundo perdido e ferido, tão amado por Deus.
Oro sinceramente que o Senhor Jesus Cristo, o cabeça da Igreja, abençoe o leitor e que este abrace a causa do evangelho em suas orações e suplicas, e batalhe por manter a causa do nosso Senhor e a sua verdade expandida pelo mundo. Que Deus possa tocar corações para esse fim. Amém!
Daniel Buanaher
Junho, 2015
Pemba – Cabo Delgado, Moçambique
[1] Pemba: capital da província de Cabo Delgado, Moçambique.
[2] Capulana: um pano que as mulheres moçambicanas usam para enfeitar adornar o corpo.
[3] Cofió: uma espécie de chapéu que os muçulmanos usam.
[4] Igreja Assembleia de Deus de Cobilândia – liderada pelo Pastor Jair Chaves
[5] Muadin: aquele que (do alto dos minaretes) conclama os muçulmanos às orações na mesquita.
[6] Allá: Deus em árabe
Atualizando as informações
A igreja do Ibo já tem piso, portas e janelas, temos três candidatos ao batismo que estão se preparando, assim que terminarem faremos o primeiro batismo que a ilha já contemplou, será uma grande vitória, todo mês pastor Mário Ndombnuela recebe visita, quando eu não vou pessoalmente, alguém vai me representar, assim ele e a igreja são fortalecidos, também já providenciamos a rede de pesca, agora o pastor junto com a família tem peixe em casa, também mandamos vários dvds, com pregações, ensinos, filmes bíblicos, assim os vizinhos são evangelizados com essa estratégia, obrigado pelas orações.
Se quiserem informações atualizadas sobre esse trabalho, visitem meu facebook.
Pastor Williham Scardua
Missionário em Pemba- Cabo Delgado
Moçambique-África