O cristão como um animal doméstico perdeu sua personalidade feroz de protestar contra os males e injustiças do mundo.
Um dos críticos mais afiados da religião foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Em sua obra “O Anticristo”, o autor dispara flechas afiadas contra o cristianismo. Logo nas primeiras páginas, ele afirma que o cristão é um animal doméstico, de rebanho e doente. Ao observar o cenário da cristandade na pós-modernidade, chegamos a indigesta conclusão que a crítica de Nietzsche além de válida, também é necessária. Vejamos como podemos aprender com o diagnóstico do filósofo.
Um animal doméstico
O que sabemos sobre os animais domésticos é que são dóceis, não oferecem nenhum tipo de ameaça a seus donos. São submissos, subservientes e estão sempre ali, onde colocados. Animais selvagens domesticados perdem toda sua ferocidade e instinto de sobrevivência. Aprendem a depender dos mimos e da boa vontade de seus donos para terem suas necessidades satisfeitas. Alguns animais já nascem em um ambiente doméstico e não conhecem a vida fora dali. Outros, porém, são removidos de seu habitat natural e feitos domésticos, até perderem completamente sua qualidade selvagem.
O cristão como um animal doméstico perdeu sua personalidade feroz de protestar contra os males e injustiças do mundo. Teve sua natureza profética neutralizada. É incapaz de se levantar do banco em que faz orações e ser a mudança pela qual ora para que ocorra no mundo. O cristão se torna doméstico quando despreza o mundo ao seu redor em função do desejo de escapar daqui o mais depressa possível; não para se encontrar com Deus, mas sim para se ver livre dos problemas e responsabilidades que não consegue lidar. O cristão é doméstico quando sua fé o estaciona na história, fazendo-o sempre se lamentar pelo hoje e sentir saudades do ontem, enquanto o hoje, evapora diante de sua passividade e omissão.
Um animal de rebanho
O que há em comum com todos os rebanhos que já tivemos a oportunidade de observar, é a rotina. Rebanhos são programados e previsíveis. Sabemos exatamente o que estarão fazendo quando o Sol surgir e quando se pôr. Geralmente ressaltamos a união do rebanho como uma qualidade e prezamos por mantê-la. Os animais que por hora desgarram do rebanho são imediatamente tachados de rebeldes, desobedientes e perdidos. Não damos a eles sequer o benefício da dúvida. Nossa preocupação em manter a ordem vigente intacta e os números sob controle, nos condicionam a fazer tal juízo de valores.
E se pensarmos fora da caixa por um instante? Não são poucas as vezes em que a ordem que tanto nos esforçamos em manter está corrompida. Por que não ouvimos o que aquele que se desgarrou tem a dizer? É possível que seus passos na contramão representem um desencanto com as incoerências e desumanidades do próprio sistema. Protestar contra a ordem pode significar um nado em direção a superfície para finalmente poder respirar um ar puro livre de contaminações
.Um cristão se torna um animal de rebanho quando se rende a comodidade programática. Se dá por satisfeito aliviando sua consciência através de uma rotina semanal de religião que não o transforma em alguém melhor. É incapaz de questionar as ilegalidades da ordem a qual pertence. Simplesmente aceita. Se esconde por trás de uma hermenêutica que favorece sua indiferença.
O texto bíblico nesse caso, é sempre interpretado conforme lhe for conveniente. “Amontoam para si doutores conforme seus próprios desejos” (2Tm 4.3) para que legitimem seu estilo. Apreciam a imobilidade, o culto a inércia e uma teologia que justifique e valide sua apatia. Elegem como verdadeira, uma cosmovisão política que o desobriga a pensar e participar de soluções para os problemas do meio em que vive. Um cristão de rebanho abriu mão de sua autenticidade para abraçar um estilo de vida que permite que pensem e decidam por ele, mesmo quando o rumo dessa orientação se desgovernou.
Um animal doente
Não foi por acaso que o autor tenha usado essa expressão por último. Além de doméstico e de rebanho, o animal também é doente. Esse estágio, representa a fase terminal de degeneração. Já não cumpre mais suas características domésticas e muito menos segue de maneira cega os desvios da ordem. Sua participação e atividade histórica é completamente nula. O animal doente não encontra motivos para o menor engajamento que seja. Não há mais causas para se lutar, ideais para se perseguir e muito menos utopias que o façam se levantar.
O cristão como um animal doente não está morto. Antes estivesse; pois não há nada mais trágico do que um vivo que se comporta como um morto. Nessa fase, o cristão doente não faz outra coisa a não ser esperar. Espera pelo paraíso, pelo arrebatamento ou por algum evento que o transporte desse mundo para o outro. O caos é até desejado. Ver o mundo em chamas não causa mais lágrimas, mas sim, um inacreditável e sádico conforto de que os sinais estão se cumprindo, portanto, “comemoremos”.
Passa-se a esperar e até desejar que as coisas piorem, para que o Apocalipse se cumpra logo. A frieza e a indiferença indicam que o que um dia foi coração acabou virando pedra. O cristão doente foi desumanizado. Preocupa-se apenas em preservar a si próprio e cuidar da manutenção da própria salvação. Seu egoísmo se disfarça de santidade. Ilhado, adotou uma espiritualidade de isolamento, destruindo todas as pontes de contato até ele. O cristão doente evita pessoas sob a justificativa de não querer se contaminar.
Ser doméstico, de rebanho e doente não podem ser características dos que uma vez foram chamados de “Luz do Mundo”, mas são qualidades dos que a passos largos estão aceitando se metamorfosear nas “Sombras do Mundo”.
Texto corajoso, totalmente fundamentado, muito bem escrito e, vamos combinar: necessário. Muito obrigada, Matheus! Por mais pessoas que incorporem a crença por um mundo melhor à atitude e luta por ele. Um homem se edifica não só por suas orações, mas pelas atitudes que performa em consonância com o exemplo de Cristo e suas preces. Obrigada.